quinta-feira, 30 de maio de 2019

As mulheres que “mantêm o diálogo vivo” na Guiné-Bissau


A 25 de outubro de 2018, o secretário-geral das Nações Unidas disse ao Conselho de Segurança, em Nova Iorque, que as mulheres “mantêm o diálogo vivo” na Guiné-Bissau.

Passavam-se quatro anos desde o início da crise política e institucional que começara com a demissão do primeiro-ministro eleito. Nesse período, o país tinha tido sete chefes de governo diferentes.
As eleições legislativas, marcadas para novembro, tinham sofrido mais um adiamento. No relatório apresentado semanas antes, o secretário-geral mostrava dúvidas sobre o cumprimento do processo dentro do calendário.

Quando António Guterres nomeou o papel das guineenses, destacou o trabalho de novas organizações criadas por mulheres, os esforços de mediação e as leis que tinham sido criadas. 
 A votação acabou por acontecer no dia 10 de março, com a participação de cerca de 85% dos eleitores. As listas de candidatos tinham o nome de 830 mulheres, a maior participação feminina de sempre na história da democracia guineense.

Alguns momentos da crise lembraram Francisca Vaz, uma política guineense,  da Guerra de 7 de junho, que dividiu o país em 1998 e 1999.

Na altura, Francisca Vaz era deputada da Assembleia Nacional Popular. Com outra deputada, Teodora Inácia Gomes, visitou as frentes de combate e tentou que os dois lados voltassem ao diálogo. Em 2015, ela temeu que o país estivesse no mesmo caminho.

“Começou a haver uma onda de violência. Os jovens saiam à rua, havia marchas, as mulheres também saíram várias vezes. Em maio, a violência chegou a um tal ponto que houve tiros, e morreu uma criança de 13 anos. Aí, fomos pedir apoio às Nações Unidas. Foi um grupo de 70 e tal organizações de mulheres. E resolvemos criar o grupo de mulheres facilitadoras.” 
Com o apoio do Escritório Integrado da ONU para a Consolidação da Paz na Guiné-Bissau, Uniogbis, o grupo organizou, durante três meses, encontros com as várias partes.
“Andámos por todo o país, porque estava completamente dividido a nível social. Havia organizações de mulheres que estavam em ruptura. Mostramos que só com diálogo é que podíamos consertar a situação degradante a que tínhamos chegado. Chegámos a encontrar famílias que deixaram de se falar por causa do conflito.”

Com a coordenação de Francisca Vaz, que já foi candidata presidencial, foram formados vários grupos de trabalho. A presidente da Associação de Mulheres Juristas da Guiné-Bissau, Helena Neves Abrahamsson, participou nesses esforços. As mulheres reuniram na mesma sala o presidente do país, membros do governo, deputados, antigos ministros, secretários de Estado.

“Muitas vezes, o que nós reparamos, é que esses senhores quase que precisam é de um psicólogo. Porque estamos lá e eles podem falar durante meia hora, uma hora. Estão tão tensos, a tensão é tão grande e precisam de quem os ouça, porque o diálogo não sai, não flui.”

Francisca Vaz diz que “qualquer um dos atores reconhece o papel” que estas mulheres desempenharam no acalmar da situação. Ela acredita que, sem esta intervenção, as eleições legislativas de 10 de março não teriam acontecido.

A antiga deputada diz que “acima de tudo, importou a isenção”, porque as mulheres mostraram que “o que importava era a paz e estabilidade, e não quem ia ganhar ou perder, porque todos queriam ganhar.”

Dois meses depois do escrutínio, o Conselho das Mulheres Facilitadoras do Diálogo é uma das partes preocupadas com os atrasos na nomeação do novo primeiro-ministro. Já tiveram encontros com todos os partidos com assento parlamentar, conversaram com o presidente da Guiné-Bissau, e continuam a fazer esforços para resolver o impasse na formação da Mesa da Assembleia Nacional Popular.

Nos últimos anos, começou a ganhar força a convicção de que este novo papel das mulheres precisa ter tradução no Palácio Colinas de Boé, a sede da Assembleia Nacional.
A deputada Suzi Barbosa, presidente da Rede das Mulheres Parlamentares, fez parte do grupo que preparou a Lei da Paridade, que exige uma presença de 36% de mulheres nas listas eleitorais.

“Considerei que as mulheres guineenses, representando 52% da população, não tinham uma voz ativa na sociedade. Apesar de serem as mulheres quem mais trabalhava nas campanhas, depois, na atribuição de cargos, não eram contempladas. Era um projeto excelente, porque o que prevíamos era um aumento da participação política das mulheres.”

A proposta recebeu apoio técnico do Uniogbis, foi aprovado em novembro e promulgado pelo presidente em dezembro. Helena Neves Abrahamsson, que participou na elaboração do projeto, diz que a lei “acabou sendo esvaziada” durante a negociação.

“A norma que estabelecia e dava segurança ao cumprimento dos 36%, que era a alternância de um homem uma mulher, caiu. Os partidos políticos não aceitaram. Todos eles chumbaram essa norma.”

As eleições legislativas de março foram as primeiras sob a nova lei. Apenas dois partidos cumpriram a quota de 36% e a maioria das mulheres foram colocadas em locais inelegíveis das listas.

Entre 102 deputados, foram eleitas 13 mulheres, menos uma representante do que na legislatura anterior.
Em outras áreas do poder executivo e judicial, a diferença entre os géneros é igualmente significante. Em 2018, as mulheres representavam 18,7% dos ministros, 8,3% dos secretários de Estado e cerca de 28% dos juízes.

O número de deputadas eleitas desceu, mas cresceu o número de mulheres nas listas. Entre os 2.654 candidatos dos 21 partidos políticos, 1.824 eram homens e 830 eram mulheres. Muitas foram candidatas pela primeira vez.

Foi para ajudar estas candidatas que, em 2018, a jornalista Djenane de Jesus fundou o Movimento Mais Mulheres com uma colega. A organização tem o apoio exclusivo do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, Pnud.  

“Trabalhamos na área de capacitação. Demos formação em diferentes áreas, como liderança, comunicação sem violência, deveres, comportamento e ética. Conseguimos trabalhar com quase cerca de 200 mulheres, entre mulheres na política ativa e candidatas ao cargo de deputado da nação.”

Essas formações aconteceram nas várias regiões do país, onde ela pode falar com muitas guineenses. Djenane de Jesus diz que “as mulheres acordaram, tomaram consciência de que vale a pena lutar, conquistar um espaço na sociedade e dar essa contribuição.” Ela acredita que “chegou o momento de as mulheres terem voz na construção da sociedade e do país.”

Em resolução aprovada em fevereiro, o Conselho de Segurança afirma que “uma perspectiva de género deve continuar a informar a implementação de todos os aspetos relevantes do mandato do Uniogbis, incluindo os processos de reconciliação nacional, criação de instituições e resolução das causas da instabilidade.”

As Nações Unidas, através da sua Missão, agências e Fundo para a Consolidação da Paz, apoiam vários projetos de empoderamento das mulheres, género e justiça, participação política, formação de candidatos e partidos políticos. Em 2019, devem ser investidos US$ 9 milhões.
A conselheira para o género do Uniogbis, Silvia De Giuli, diz que “na Guiné-Bissau as mulheres sofrem o mesmo tipo de restrições culturais e económicas que são comuns na região, mas é de particular interesse notar que, neste país, foram capazes de se organizar.” Segundo a conselheira, as guineenses “fazem agora parte do processo político e do processo de paz.”

“Estão representadas nas conversas sobre reformas do Estado, têm puxado por reformas legais, apoiaram o Pacto de Estabilidade e o Código de Conduta durante a ultima eleição, trabalharam nas eleições como monitoras e criaram uma sala de monitoramento.”

Suzi Barbosa é eleita deputada numa área rural de Bafatá, uma realidade diferente da capital. A representante acredita que estes movimentos começam a ganhar raízes fora de Bissau, mas existem muitas dificuldades.

“A grande maioria não sabe sequer que tem direitos. A maioria entende que são cidadãs de segunda, que o marido, o pai é que realmente são os chefes de família e elas têm que se submeter à sua vontade. Inclusive o direito ao voto, muitas vezes é condicionado pelo pai ou pelo marido.”

Cerca de 62% das guineenses com mais de 15 anos são analfabetas. O número de meninas que termina o ensino primário aumentou de 21% em 2000 para 57% em 2018, mas isso significa que quase metade de todas as meninas guineenses desistem da escola antes de terminarem o ensino primário.

Suzi Barbosa diz que “é muito difícil fazer entender a uma pessoa analfabeta os seus direitos.” Segundo ela, “há uma sensibilização, uma melhoria, mas ainda existem muitas barreiras que as impedem de aceder aos seus direitos reais.”

Para a deputada, uma das motivações para aumentar a presença feminina em cargos de responsabilidade é conseguir maior apoio para programas sociais, como educação e saúde. A deputada foi reeleita este ano, tomou posse em abril, e afirma que vai continuar esse trabalho na próxima legislatura.
“Nós vamos tentar, com o mesmo número de mulheres, fazer os possíveis para que realmente aumentem os orçamentos para estas áreas sociais, que são extremamente importantes. Mas seria muito mais fácil se tivéssemos um maior número de mulheres.”

Num dos países mais pobres do mundo, que ocupava a 13ª posição mais baixa do Índice de Desenvolvimento Humano em 2018, a esperança de vida para uma mulher é 47 anos. Cerca de 33% das guineenses foram mães antes dos 18 anos e têm, em média, cinco filhos. Metade das mulheres entre os 15 e os 49 anos foi vítima de Mutilação Genital Feminina, MGF.

Segundo as Nações Unidas, além destes obstáculos econômicos e sociais, existem fatores culturais que impedem a participação política. A organização afirma que “na lei de costumes, as mulheres não têm capacidades de ter posses ou propriedades e estão sujeitas ao domínio masculino.”

Essa situação tem implicações no seu direito reprodutivo, através de casamentos forcados e violência doméstica. Metade das guineenses diz sofrer abusos físicos.

Francisca Vaz tem uma carreira política de mais de três décadas. Foi deputada, líder partidária, candidata presidencial, professora, ativista. As próximas eleições presidenciais devem acontecer ainda em 2019, de acordo com a lei eleitoral do país, e ela gostava de ver uma mulher candidata, talvez vencer. Mas, na sua opinião, o preconceito contra mulheres na política “nunca desaparece”.
“Não nos conseguem ver como mulher. Dizem que somos macho-mulher, porque a sociedade em que vivemos é muito machista. Como mulher, é preciso muita coragem, é preciso uma estrutura muito boa a nível económico e familiar para conseguir aguentar tudo isso.”

Apesar dessas dificuldades, o caminho continua sendo feito. Na madrugada de 25 de maio do ano passado, dezenas de autocarros começaram a chegar a Bissau. Vinham de todo o país. Centenas de mulheres saíram desses veículos. Mais de mil, todas vestidas de branco, reuniam-se para discutir o futuro do país e o seu papel nesse futuro. Acontecia o primeiro Fórum das Mulheres e Raparigas para a Paz na Guiné-Bissau.

O próximo encontro já está marcado, para 30 de janeiro de 2020. O evento vai acontecer a cada dois anos, sempre nesse dia, para marcar o Dia das Mulheres Guineenses.
Rispito.com/ONU News, 30-05-2019

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