sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

A ideologia política e o futuro da Nação

Luís Vicente
Talvez seja prematuro falar na consolidação do processo democrático no País, uma vez que a democracia implica o respeito pelas instituições do Estado, Constituição da República, Órgãos de Soberania, administração pública e o exercício pleno da cidadania. Mas, no entanto, pressupõe-se que as bases para a tal consolidação já tivessem sido lançadas à pelo menos 40 anos atrás.

Neste quadro, a gestão política e ideológica conduzida desde essa altura até à presente data deve ser analisada e debatida em múltiplos aspetos, pelo que o desafio aqui proposto encarna a razão, a causa e o olhar sobre as várias perspetivas da construção da Nação. Entendo que o País nunca esteve em ruturas constantes por falta do exercício de atividade política. O que se observa é o mecanismo de definição das funções e dos posicionamentos em diversas esferas do poder, desde o controlo dos bens públicos à necessidade e procura de preenchimento dos lugares na cadeia de comando e nas ligações com a cúpula, esta detida por poderes altamente estratégicos e bem sedimentados.

A ideia subjacente a detenção do poder reside no facto de pretender fazer parte de uma elite em resultado de uma falha de integração do País no seu todo. Deste modo, o alinhamento entre as várias formas do exercício do poder resulta num processo da tomada da causa pública como um bem indivisível pertencente a uma ordem específica. Os erros são consolidados e aceites como tal, sendo essa a única forma de resolver os problemas da Nação, quando na verdade são soluções para os problemas criados por tais segmentos entendidos como legítimos possuidores da coisa pública e da verdade nacional.

Em boa verdade, a nação vive numa “hipotética” ideologia política consubstanciada na visão do social mas com uma vertente liberal, sobretudo se tivermos em conta as reformas encetadas nos anos 90 e consolidadas com a afirmação do papel do Estado na definição das políticas públicas para os setores estratégicos do País. 

A legitimação que foi outorgada e facilitada pela intervenção direta do Estado na esfera privada, garantiu que a mesma fosse um processo natural, resultado de posicionamentos, garantias e condições de uso particular e individual por grupos, classes e/ou corporações. Ou seja, a coisa pública deixou de estar sob controlo e tutela do Estado e passou a fazer parte da esfera privada, invertendo assim os papéis, conforme vontade dos que detinham/detém e controlavam/controlam o poder.

O facto de se ter verificado falhas no processo de assimilação dos conceitos Estado, administração pública e governo, traduziu-se automaticamente em obstrução do processo de consolidação da Nação como um todo, invertendo assim os valores éticos, intrínsecos à sociedade, para o fenómeno ter, possuir e controlar, independentemente da origem do poder e da forma como o mesmo é alcançado e exercido. Daí, progressivamente se vem regredindo até chegar ao estado em que se encontra hoje a Guiné-Bissau, refém de uma classe castrense poderosa, não só em termos militares, políticos, como também económico e financeiro.

Porém, isto tem o seu enquadramento naquilo que foi outrora a ideologia política do poder então vigente. Na verdade, a postura política que se observou na pós-independência, caracterizou-se sempre por uma forte presença da ala militar do Partido PAIGC nas esferas do poder civil. Apesar das mudanças proclamadas de mudanças de regime e orientação ideológica, esse fenómeno se manteve e, lamentavelmente, se acentuou.

Se recordarem, em 1984 foi aprovada a atual Constituição da República e nomeado Presidente da República. Nesse período todas as alas de extrema-esquerda do então partido único foram dissolvidas, acabando por abandonar a matriz de orientação marxista, a tal matriz que consubstanciou toda a lógica revolucionária que conduziu a luta de libertação nacional. Nesse momento capitulou o pensamento ideológico do partido libertador e do seu fundador, associado à real necessidade de afirmação de um País e de uma esquerda forte que tinha por objetivo a consolidação do Estado de direito democrático tendo como pressupostos o reajustamento estrutural, a coesão e a unidade nacional. 

Portanto, partindo do princípio que seria um caminho para o reajustamento estrutural, a ideia não era má, mas precisava de ser fomentada e partilhada em todo o espetro político do então partido no poder, facto que não aconteceu, por falta de debate em torno da visão e da estratégia que se pretendia para o País. Devemos ter presente que é nas bases que reside a força de um partido. Elas devem ser permanentemente, esclarecidas, de forma coerente, quanto aos objetivos estratégicos dos projetos políticos para cuja implementação são chamadas a intervir. Ter as bases esclarecidas e organizadas, dá à atividade político-partidária o caráter unitário e planeado que necessita, para se fazer frente às obstruções e desvios que ameaçam o processo de consolidação de um Estado de direito.

Com a transição democrática iniciada em 1990" e adoção do pluripartidarismo em maio de 1991 surgiram formações partidárias de espectro político esquerda e centro-esquerda. Nessa altura, algumas experiências partidárias assentaram-se num princípio orientador que fragilizavam as respetivas bases e minavam o exercício de participação política de forma isenta e desapegada, uma vez que, paradoxalmente, as mesmas eram dirigidas de acordo com os interesses essenciais do partido no poder. Este facto, levou a que, anos mais tarde, muitos elementos e quadros desses partidos, optaram por seguir outras vias de participação e exercício de cidadania, consciente e responsavelmente, uma vez que as condições políticas em que evoluíam não se lhes revelaram favoráveis aos desígnios a que se propuseram. 

As formações partidárias surgidas na epoca, mais propriamente em 1991, tiveram todas por intuito, contribuir para a consolidação do Estado de direito democrático, respeito pelos princípios da independência nacional, preservação da soberania, liberdade, solidariedade e dignificação do Homem guineense. 

Em certa medida, um desses partidos deu conta que havia um espaço vazio na política guineense, que era necessário preencher, tendo em conta a gritante inobservância dos princípios programáticos que orientaram a luta de libertação nacional. De salientar que o líder desse partido foi militante do partido fundador da nacionalidade e tinha sido dele expulso nesse mesmo ano.

Após as eleições de 1994 o combate político, entre os dois maiores partidos e os seus respetivos líderes, intensificou-se no plano das relações pessoais, partidárias e parlamentares, acabando por não permitir a criação de condições necessárias a uma parceria estratégica, orientada para a discussão dos problemas que o País enfrentava e dos quais precisava de se libertar, pela via de um salto qualitativo no aprofundamento do diálogo e consolidação democrática. 

Se as condições político-sociais já não eram as mais favoráveis, a guerra civil de 1998 pioraram-nas. Mergulhou o país numa luta fratricida, com elevadas perdas humanas e materiais. Estagnou o aparelho produtivo e estatal, e, automaticamente, acentuou a degradação dos sistemas social e político do país. Na verdade, abriu-se a “caixa de pandora” e, consequentemente, favoreceu as condições para as sucessivas guerras pelo poder, que até hoje se vive na Guiné-Bissau.

Sobre este assunto, gostaria de partilhar um excerto da corajosa homilia do falecido bispo de Bissau, D. Settimio Ferrazzetta, proferida a 9 de Agosto de 1998, na qual sintetizou as causas profundas da crise, da seguinte forma: 

“Esta guerra revela um grande pecado social, que se regista há alguns anos…É preciso reagir. O povo da Guiné-Bissau é pacato, sabe sofrer, mas até certo ponto” (…) “Quando cada um de nós se pergunta as razões desta guerra, a resposta estará nos pontos seguintes: ninguém dará ao injusto o direito de ser usurpador dos bens dos outros; ninguém dará ao rico o direito de escravizar os pobres; ninguém dará a quem exerce o poder o direito de receber o que pertence aos outros; ninguém dará o direito ao corrompido de matar o inimigo”.

Sem querer introduzir mais aspetos que nos distanciam da análise, apesar do mesmo fazer parte de um todo, recomendo a leitura do livro: Colapso e Reconstrução Política na Guiné-Bissau 1998-2000, Um Estudo de Democratização Difícil, de Lars Rudebeck. 

Com os graves problemas sociais, políticos e económicos que ocorreram nessa altura, aliado ao descontentamento popular, precipitou a vitória da segunda maior formação política e partidária nas eleições seguintes (ano 2000), assumindo-se assim o fim de um ciclo de partido único no poder.

O que importa aqui refletir, é o seguinte: se tivermos em conta todo o processo político ocorrido, pós independência até essa data, de certeza que entenderemos que fatores conjunturais foram mais determinantes para a vitória eleitoral do líder da tal formação partidária, que quaisquer outras, supostamente de cariz étnico ou carisma pessoal.

Sem dúvida que nessas eleições, a democracia falou mais alto. O povo escolheu quem deveria exercer a governação e chefiar o Estado nessa altura. Quanto ao resto, todos sabemos o que se sucedeu: golpes e contragolpes, períodos de transição difíceis, governos nomeados e demitidos, confiança dada e retirada, subjugando e descartando estratégias de consolidação do exercício democrático do poder.

Porém, era necessário estancar o mal e fazer algo para a estabilização do País. Isso era da responsabilidade dos dois maiores partidos, enquadrarem os princípios programáticos que lhes são subjacentes e concertarem posições no sentido de alavancar o País. Um dos partidos ocorria na capitulação da sua liderança e o outro apresentava uma crise enorme de liderança. Sem querer alongar muito, apenas gostaria de recordar o período que decorreu entre Janeiro de 2009 até à presente data e fazê-la corresponder ao exercício e separação do poder entre as esferas Estado, governo, administração pública e partidos políticos. 

Assim é que, surge uma nova liderança no seio do maior partido guineense, com esperanças em retomar a causa maior e projetar não só o partido como também o País, o que viria a acontecer com a maioria qualificada desse partido nas eleições de 2009. Poderia ser esse o caminho para o início de um processo de consolidação democrática tendo em conta os princípios que orientam um Estado de direito democrático. 

No entanto, mais uma vez, o exercício do poder foi condicionado a vontade de uma elite que à revelia das bases do partido, pelo menos de uma parte, ofereceu os préstimos para uma candidatura às eleições presidenciais de 2012. Na verdade, julgo que faltou uma estratégia de concertação com as bases do partido, uma vez que ainda existia a dúvida sobre a legitimidade e ao mesmo tempo a suspensão das funções do PM, presidente do partido, para se candidatar à PR. Era necessário um esclarecimento cabal da Constituição da República que legitimaria o sufrágio, quanto a essa pretensão do líder do Partido. Sobre a situação no PAIGC e para melhor compreensão desta questão, sugiro a consulta do livro “Da maioria qualificada à crise qualificada, 2013”, Ernesto Dabo. 

Se já havia um certo desconforto por parte da elite militar e de alguma classe política, a mesma intensificou-se com a crise político-militar ocorrida em 2012, de que resultou o derrube do governo e Chefe do Estado, assim como provocou, mais uma vez, uma crise profunda, em termos sociais, económicos e políticos, com custos enormes para o País. Daí que, “olhar para o espelho retrovisor da história ajuda-nos a compreender o nosso presente”.

Na verdade, o exercício da atividade política em democracia, tem os seus pressupostos assentes na garantia de participação de todos num processo democrático e sempre na lógica do bem comum. Essa participação deve ser vista de uma forma global e abrangente, caso contrário a segmentação poderá ser um fator de falta de coesão nacional.

A falta de ideologia e de orientação política que caracterizou a liderança do país, desde o desaparecimento físico do fundador da nacionalidade guineense, gerou dirigentes e praticas, que sustentaram mal a consolidação do nosso projeto maior de construção do nosso progresso e liberdade, enquanto nação e seu Estado. Perdeu-se a linha condutora desse grande desafio, na onda de intrigas e desmandos que atravessa a classe politica e sociedade guineenses.

Por consequência de tudo isso, a luta pelo poder e controlo dos bens públicos, consubstanciados na falta de estratégia nacional, fizeram o País e o Estado atingirem um estágio demasiado elevado de descrédito. Para a reconstrução da nossa nação fragmentada, importa agora ter em devida conta esta ausência de princípios ideológicos e de orientação política.

É evidente que os erros e/ou falhas que se cometem custam automaticamente uma geração, esta entendida como a renovação da Nação, pelo que o mecanismo de inversão dessa tendência deveria ser ele também automático, acionado no sentido de alteração e mudança de paradigma. Julgo que serão necessárias profundas mudanças na orientação política e ideológica, na sociedade civil e no Estado, nos partidos políticos e na administração pública. Os cidadãos mostram-se desconfiados em relação aos titulares dos cargos públicos. Instalou-se o clientelismo, servilismo e deterioração dos padrões éticos da política e da sociedade. É quase nula a autoridade do Estado, por consequência duma aguda crise social e de ausência de valores.

O país carece de reformas profundas, nutridas por valores inalienáveis, assumidos por homens e mulheres de bem, com carater, que respeitam o seu semelhante, a sociedade, o povo e o bem público, em todas as esferas da vida nacional. É necessário refletir sobre o processo de regressão social e política em curso no nosso país, visando-se um urgente salto qualitativo, no sentido de se proceder à reparação dos danos causados, dar lugar a novos intervenientes e novas ideias, sem sobressaltos. 

Devemos ter presente que não é apenas uma classe ou individuo quem tem o legítimo direito de tomar as rédeas dos destinos do País. A Guiné-Bissau tem uma riqueza inalienável que é o seu povo. Fazendo convergir essa riqueza, em estrita observância do seu belo mosaico étnico e sua extraordinária diversidade cultural, faremos da Guiné-Bissau um grande País e dos guineenses uma respeitada e admirada nação no mundo. A assunção deste desígnio nacional e faze-lo resultar no plano político, social, cultural e étnico, depende principalmente do guineenses. Nesse quadro, não se pode colocar a questão apenas no nível macro ou na esfera do interesse restrito de uma minoria, sem ter em conta a importância e o papel da juventude, da sociedade civil e dos novos atores políticos.

É imperativo que o processo seja desenvolvido no quadro de uma estratégia de participação e dentro de uma abordagem “Top-Down e Bottom-Up”, garantindo que todos os projetos, iniciativas, planos e estratégias de reconstrução da Nação, correspondam claramente a prioridades nacionais e abarquem um leque de intervenientes que inclua responsáveis políticos, governo, administração pública, comunidade académica e sociedade civil em geral. 

Julgo que está na hora de reformar o Estado e refundar as bases ideológicas que balizem novos desígnios nacionais! LV

Lisboa, 02 de Dezembro de 2013

Luís Vicente
OBS: Todas as opiniões aqui editadas são da inteira responsabilidade do seu titular (autor)

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