sexta-feira, 31 de maio de 2019

Pano de pente - herança têxtil que espelha riqueza histórica


A Guiné-Bissau conseguiu a proeza de guardar em tecido parte da sua herança cultural: no panu di pinti (pano de pente, em português). Diariamente, pode gabar-se de vestir cultura e de a comercializar junto daqueles que visitam as suas artérias. A personificação do seu berço é obtida nas cores que o tingem. São estas que, aliadas aos padrões camaleónicos, conseguem interpretar segmentos de um património inestimável.


Apesar da sua origem situar-se na etnia manjaca (povo manjaku) — que vive maioritariamente na região costeira de Cacheu, plantada no norte de Bissau —, a fama do pano de pente foi-se espalhando por quase todo o território. Nos dias que correm, é muito comum verem-se mercados tradicionais guineenses pintados com as suas tonalidades, conquistando a atenção de cada turista que o vislumbre.

Outrora era usado exclusivamente em roupas e cerimónias tradicionais. Os seus modelos e pigmentações variavam consoante as ocasiões, alargando-o até às comemorações matrimoniais, rituais de iniciação e funerais. Considerado sinónimo de riqueza para os manjakus, o pano de pente passou a ser celebrado, também, como ícone de moda, ocupando um lugar cativo nas mais diversas coleções e passerelles — africanas e europeias.

A sua utilização transgrediu as fronteiras estilísticas. Hoje em dia, com a ajuda da Organização Não Governamental (ONG) Artissal, que atua nos domínios do desenvolvimento do Comércio Solidário e Justo guineense, é exportado. Além disso, graças a esta ONG, a história da tecelagem guineense tem sido perpetuada num atelier tradicional com produção própria, que incentiva e dinamiza a economia local
O processo de obtenção dos vários metros de pano de pente é (todo) manual. Chega a ser considerado um trabalho moroso, colecionando já diversas gerações de tecelões — conhecidos nacionalmente como ficiais. Com a ajuda de um tear (ou pente, como os guineenses o denominam), todo o corpo se dedica a aperfeiçoar a técnica exigente de entrelaçar fios. Numa coordenação motora exímia, fazendo uso dos membros bem treinados — das mãos e dos pés —, os motivos coloridos são criados.

Atualmente , e embora seja uma tradição manjaka, são os homens da etnia papel que continuam a tecer os panos de pente. Aprenderam tudo com os seus pais, transmitindo o legado para os seus filhos e assim continuamente.

Ainda que os métodos de aprendizagem sejam os mesmos de há largos anos, estes tecelões acreditam que desempenham uma atividade sagrada. Defendem convictamente que os espíritos divinos são os responsáveis pela passagem do testemunho. Estes, ao apoderarem-se das suas cabeças, conseguem ajudá-los a desempenharem a tarefa prodigiosa e demorada — para um painel de pano com cerca de 12 metros, é necessário um dia de dedicação e mestria laborais.

Assim como a tecelagem, a utilização destes panos continua a ser prestigiosa. É símbolo de estatuto social e, por este motivo, as oferendas de panos de pente são consideradas uma honra. Além disso, são peças de grande estima e dispendiosas, devido à sua principal matéria-prima: o algodão — maioritariamente importado.

Segundo Mariana Ferreira, etnóloga e fundadora da ONG Artissal, durante o século XII, devido à sua qualidade e à riqueza dos seus padrões, o pano de pente chegou a ser uma moeda comercial africana. Angariou doses astronómicas de fama e foi alvo de admiração, ficando apenas reservado à classe nobre.

Os padrões que lhe conferem a singular estampa são muito mais do que simples detalhes de ornamentação. Estes, para quem os sabe interpretar, transmitem ensinamentos, provérbios, tradições, relembrando algumas das memórias do país. Enquanto os fios vão sendo entrelaçados, os ficiais vão produzindo estórias — e sempre de forma coordenada. Há espaço para narrativas sobre o significado da pátria; para os dizeres populares; para a confissão de sentimentos, como a angústia, o luto, a felicidade ou o amor; e, ainda, para uma ode à “mãe natureza”.

e uma forma geral, cada peça tecida é encarada como uma obra de arte, capaz de expressar a identidade cultural do povo guineense. Segundo a etnóloga Mariana Ferreira, que recentemente memorizou em livro a simbologia e o misticismo do pano de pente, os guineenses, independentemente da etnia, nutrem um profundo respeito por este adereço histórico. “Não é um vulgar pedaço de tecido; (…) é um vetor e testemunho de cada etapa de vida (…). Para os que partem, é a riqueza além da vida; para os que ficam, a lembrança; sinal de presença e de proximidade. (…) É um excelente meio de comunicação e um código, através do qual se ensina e se aprende”, explicou.

Os mestres ficiais, que podem ser encarados como verdadeiros domadores de teares, através de paus (os lliços) — que os ajudam a “arquitetar” a obra — vão criando figuras geométricas, rostos e contornos. Cada um dos panos que produzem mantém uma designação que resistiu ao tempo e à informalidade da oralidade.

Segundo Mariana Ferreira, os “panus di pinti” com abelhas são conhecidos como os panos “Baguêra”; os que possuem olhos de vaca são denomindos “Udju di baka”; os que espelham imagens de árvores de grande porte (as poilão) — consideradas elementos sagrados na Guiné-Bissau — foram batizados de “Polôn”; e os que imprimem o alfabeto são conhecidos como os “panus-letra”.

Embora o pano de pente seja uma figura assídua e recorrente nos mercados de Bissau, continua a ter um papel crucial na celebração de datas festivas ou em rituais. Por vezes, é apenas utilizado em marcos pontuais, devido à sua inestimável preciosidade.

De acordo com as investigações etnográficas, em determinadas etnias, nas cerimónias de casamento — nas oficiais e nas tradicionais — é dado de presente, como símbolo de prosperidade e proteção. Nas festividades fúnebres, antes do enterro, é colocado junto do corpo do defunto — também pode servir de mortalha (“mortadja”). O prestígio e riqueza passam a ser medidos consoante o número de panos dispostos. Além destas, também é, por exemplo, exibido em festejos de nascimento (de um filho ou neto). 

Na Guiné-Bissau, quantos mais panos de pente encherem uma mala, melhor. Necessitam de ser preservados e amealhados durante toda uma vida — missão que é, também, perseguida pelas gerações vindouras. São comprados, dobrados e guardados religiosamente, naquela que, por vezes, pode ser a única peça de mobília de um quarto: uma espécie de cofre-forte. Depois de serem usados como segunda pele de muitos, somente em ocasiões específicas, voltam a ser acomodados em quatro paredes e depositados num lugar seguro.

No fundo, o panu di pinti é percecionado como um tesouro merecedor do seu próprio baú; da sua casa-museu: “lugar destinado ao estudo das artes; onde se reúnem curiosidades de qualquer espécie ou exemplares artísticos; de especial interesse devido ao seu valor artístico, patrimonial ou histórico” (definição que consta no Dicionário de Língua Portuguesa Priberam).

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